sábado, 5 de novembro de 2011

Sobre o novo acordo ortográfico

"Um cê a mais"

Quando eu escrevo a palavra ação , por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na lingua portuguesa. Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros deste infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já não parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.

Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevessadas e arranhadas, como neorrealismo ou atorretrato. Caíram hífens e entram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho de a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha ente eles, porque já não se entendem. Em veem e leem por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam a importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. 
Não sei se estou a ser suscetível , mas sem sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham. 

As palavras transforma-nos. Com um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos  amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar.

Manuel Halpern in "Jornal de Letras"
(Visão, 04-10-2010)

1 comentário:

  1. que texto tão bonito :)
    é triste, vermos o nosso acordo ortográfico a ser mudado!

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